– Antigamente, para seu sofrimento, o homem tinha o refúgio da crença. Mas agora?
agora que precisamente...
– ... mas vejam! Exactamente quando mais se prega a libertação do homem, maiores são as tentações da escravidão.
O que era necessário era pois educar o homem na coragem da liberdade. Para a grande massa dos homens, mais custoso que tudo era a própria liberdade. Por isso ostentavam, aliciando-lhes a voz escrava. Porque para o comum das gentes, a vida só se justificava numa dádiva total, fosse ao que fosse: a uma doutrina, a um chefe, a um club de futebol... A dedicação a um club! Eis aí o símbolo perfeito da estupidez humana, da vileza do seu sangue.
– A pior luta para o homem, é talvez a luta contra si...
Porque, na verdade, o homem tinha pressa de alijar de qualquer modo o fardo de si próprio. Sabia que às leis ele as fizera, que os deuses ele os criara e os matara. Mas assim mesmo, tinha medo de ficar sós consigo, como diante de um muro.
O chefe antigo, menos talvez que um chefe, era um delegado: delegado de Deus, da Lei, da Tradição. Sem dúvida, o Delegado confundia-se quase sempre com o Próprio, porque a verdade era o que estava diante dos olhos. Mas justamente o confundir-se era o melhor modo de O não ser. Porque toda a sua pessoa se absorvia na do Outro. Mesmo um rei era Deus, por si próprio, e não por delegação, deixava assim mesmo de ser rei para ser Deus. E um deus, sim, adorava-se. Mas um chefe moderno não é um deus...
– Pois bem: nós queremos afirmar a vitória total de cada homem. Não deitar a perder o esforço da liberdade. Ter coragem de saber que os valores conquistados pelo homem são realmente valores humanos com o sinal da sua mortal condição. Não converter em mitos, em saudade dos deuses, precisamente o que conquistámos para os destruir. Termos a resignação corajosa de saber que a Razão não tem corpo de mulher, que a liberdade não é uma alegoria. Saber enfim que um Chefe é apenas um homem experiente e sabedor, um companheiro mais capaz – mas só isso. Desprezarmos portanto quem julga que um Chefe não tem ossos e tripas como nós, o traz em estampas como crentes beatos, e que lhe coscuvilha a vida e sabe de cor os hábitos que tem, o número de pedras de casa onde nasceu e os traques que vai dando pelo dia adiante... Se os deuses morreram, porquê a humilhação de os ressuscitar? Que a libertação do homem seja total, atinja o que há nele de mais nobre. Era o que eu tinha a dizer.
(...)
Vergílio Ferreira in Apelo da Noite, Bertrand Editora, 1989.
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